quinta-feira, 25 de junho de 2009

sem textos prontos

Quisera eu ter os olhos bem redondos e iluminados, dourados pelo pôr-do-sol ideal. A pele úmida e a palavra certa pra dizer. Quisera eu que houvesse um diretor cuidando de minhas cenas mais importantes. O que é fundamental acontece num metrô em obras, numa noite fria e sem graça, num momento de pressa, de timidez, a palavra sempre falta, e nunca falta no filme.

Eu não faria questão de terminar bem, num beijo bom e molhado na mulher cheirosa que me roubaria a cena nas ruas, ou no trailer. Não faço questão que a cena me seja de amor. Podia ser meu amigo indo pra Austrália, apenas isso. Só queria que não me faltasse a palavra. Ela me falta, como me falta o close e a chance de um remake.

Me faltar a palavra é como me faltar a alma. É como me faltar as mãos pra comer um abacaxi. Quisera eu estar ofegante e isso dizer tudo. Se eu estou ofegante, estou perdido, ninguém há de me interpretar. Eu quero dizer alguma coisa, e quero que esta coisa faça sentido. Mentira, quero que esta coisa convença. Mentira, quero que esta coisa me traga o que eu quero. Tantas mentiras me aparecem pra dizer e a verdade, que resolveria tudo, não é capaz de sair pela boca.

Todo meu desejo, tão forte, não é capaz de me impelir a buscar equilíbrio com as palavras. Desabafo aqui, floreio alí, insinuo de noite, pondero de dia. E o amigo indo pro avião, a mulher se perdendo no horizonte, o pôr-do-sol virando breu. Tenho raiva do cinema. Quisera eu não dizer nada, só olhar, ser acompanhado por uma bonita música. Acordes finos e acústicos, depois uma bateria leve, uma voz rouca, lembranças de uma canção que faz dançar, tudo é frágil e nobre desde então.

A canção nunca falta. Um bom motivo para tudo também não, e onde estão os meus? No mundo real, meus momentos poéticos são vazios, um cinema vazio. Só sou visto em momentos práticos, rápidos, ou você é claro ou não é compreendido. E eu não sou claro. Meus textos não são prontos.


Aprendo
a falar mais,
ou, mudo,
jamais mudo.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

retrato feliz

Sempre que vejo
Uma família feliz,
não vejo coisa e pessoa -
é tudo uma coisa só.

O gato brinca de bola com a vovó.

Ou será que, de fato,
é a bola que brinca
de vovó com o gato?

domingo, 7 de junho de 2009

Meus mortos

Atendi dia desses, no trabalho, uma Dona Lucy. Fiz questão de dizer o nome dela: "Pois não, Dona Lucy", com gosto. Nem sempre digo o nome dos clientes que atendo. São muitos e muitos, não dá. Mas fiz questão de dizer o nome dela. Fazia tempo que esse nome não soava na minha boca. Lucy era, ou é, não sei ao certo, o nome de minha avó, já falecida. Acho que quando ela se foi eu tinha uns 18 anos.É famosa na família a afinidade que nós tínhamos. Vovó me chamava de "Paixão da minha vida". Não é dizer que ela tinha por mim mais amor que pelos outros netos. Era só um algo a mais, que não sei explicar. Foi gostoso dizer o nome da minha avó praquela senhora que eu estava atendendo, que talvez até, por meandros da minha nostalgia, passou a se parecer um pouco com ela. É estranho quando vamos crescendo e caminhando com nossos mortos dentro da gente. A gente segue vivo e nossos mortos vão se juntando em outro lugar alheio a nós, mas presente sempre, como que formando um pequeno exército fora daqui. Mas seus nomes continuam valendo pra outras pessoas, e às vezes a gente se depara com esses xarás, e espantados nos vemos diante de alguém que, estranhamente, carrega o mesmo tipo de energia. Não é ruim topar por aí com as lucys, os marcílios, as éricas, os genésios, os antônios carlos. É um forma inusitada de reencontrá-los e saber se vai tudo bem, e fingir, sem que ninguém perceba, que falamos com eles, e não com aquele que está, de fato e fisicamente, na nossa frente. Então até logo, Dona Lucy. E muito obrigado.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Cortesia com chapéu alheio

Houve um tempo de minha vida em que não adquiri simplesmente nenhuma calça nova. Quase nenhuma meia, uma ou outra cueca. Um tempo em que não adquiri nenhum hábito realmente novo, não contraí vício por nenuma banda ou bebida nova - e olha que minha banda preferida acabou-se nessa época.

Nesse tempo, lí muito menos do que lia antes, e antes eu era um universitário preocupado em fazer tudo que desse tempo. Quem lê pouco, escreve pouco. Não foi propriamente uma parada no tempo, uma época congelada, mas por um período eu acreditei nessa coisa de ser bacana.

Ser bom de coração, ser simples e tal, relaxar diante da vida. É gostoso, é como parar pra tomar um ar antes de chegar no topo da montanha (eu nunca estive no topo de nenhuma montanha, ok, Cristo). Mas engana um pouco, se eu pudesse dar conselho a algum miúdo, diria pra nunca acreditar em ser um cara bacana, porque a gente é um animal estranho e tem "conceitos", e o conceito do que você é nunca é claro.

O miúdo gurí merece descobrir suas verdades sozinho, ficarei quieto. Mas não é um caso de pessimismo. É um alerta. Quando "você é você mesmo" (que paradoxo...), você só tem um tempo, um espaço, uma referência: você. E ninguém gosta tanto de você assim. Participar das coisas saindo da figura personal é generoso e necessário.

Conselho até pra gente adulta: apostas, com seu coração, não. Antecipe-se. Dê suas reboladinhas, atenha-se a atividades periféricas, antes que suas cuecas envelheçam. Porque no mundo essas coisas se invertem, o quão bacana você é deixa de ser visível quando é preciso estar lendo um livro novo e ouvindo uma banda nova. Quando é preciso mudar alguns hábitos e tomar atitudes que não venham do coração (crescer é isso, afinal, e só sua mãe te quer criança pra sempre).

Coração não é prefácio, não é cartão de visita. É intimidade, é vinho, é momento nobre. Houve um tempo em minha vida que parece intacto. Um tempo em que ao invés de comprar meias, dirigir um carro, me pós-graduar, eu fiquei dialogando com meu coração, prometendo a ele coisas que eu nunca soube, coisas que eu perdi, e coisas das quais eu nunca vou me acostumar em não ter.